Escrita das Mulheres

Saturday, February 17, 2007

Resenha O PINTOR DA VIDA MODERNA, de Baudelaire


RESENHA SOBRE ‘O PINTOR DA VIDA MODERNA’ (Baudelaire)

R. M. Mantolvani. (UNESP-Assis)
Este trabalho foi elaborado para o Curso de Literatura Francesa II/2002
Profa. Dra. Maria Lídia L. Maretti

Escrito a partir de 1863, O pintor da vida moderna foi construído em três fases. A primeira em Le Figaro, de 26 de novembro, a segunda em 29 do mesmo mês e, mais tarde, integrariam a coletânea de escritos de Baudelaire, editatado em l868, sob o título de L’Art Romantique. A noção de modernidade para o poeta estaria associada à missão contemporânea da arte. Estabelecendo uma nova idéia de modernidade, a tentativa de teorização da arte inspirou diversos comentários posteriores.
Na miscelânea de sua arte poética com a projeção teórico-científica característica do ensaio, Baudelaire intenta construir a imagem do pintor da vida moderna, mostrando espaços nos quais atividades e fatos aparentemente corriqueiros como a moda, as viaturas, a mulher e outros transformam-se em objetos da arte atemporal.
Sua construção critica aqueles que destinam um valor exacerbado às grandes obras de arte já reconhecidas, em detrimento da obra considerada de segunda ordem, quando nesta pode encontrar-se a referência a um recorte importante da história da arte, ao fato corriqueiro, ao registro de um detalhe significativo. O amor ao clássico e à beleza ideal não podem aliar-se ao desprezo pela beleza particular, circunstancial, marcada pelos traços que distinguem os costumes.
O poeta faz referência à pessoa de um artista que, idealizado pela visão do poeta, traça com velocidade e, em quantidade, desenhos e esboços de objetos os mais diversos possíveis. Trata-se do Sr. G., mais propriamente, Constantin Guys, que viveu entre 1805 e 1892, conhecido por sua produção de desenhos para gravura, pintor autodidata, mas também um repórter, um profundo conhecedor do mundo e da moda, observador e sensível aos sinais de seu tempo, atento às mudanças e à originalidade, considerado artista por sua capacidade de experimentar o mundo e partilhá-lo com a humanidade. Para esta criatura , o criador atribui o codinome de homem do mundo, opondo-se de certa forma ao status convencional de artista.
Segundo Baudelaire, o homem do mundo é aquele que está atento, com olhos de águia sempre observando as pequenas mudanças, os detalhes, as coisas que parecem insignificantes. São esses pequenos detalhes que o pintor da modernidade seqüestra da multidão e empenha-se em representar na mobilidade de seus elementos.
Expondo detalhadamente o comportamento diferenciado do Sr. G. na pesquisa da modernidade, estabelece a representação do transitório, do fugitivo, como alvo a ser atingido e atribui a este o valor de metade da arte, pois a outra metade reside no eterno, no imutável.
A busca de modelos no passado para representar o tempo presente é visto pelo poeta como uma forma ou fórmula que produz tão-somente o falso, o ambíguo, o obscuro. Sugere que o bom registro deve partir de incontáveis desenhos produzidos a partir da imaginação, do simbólico mnemônico e não daquele surgido a partir de um modelo vivo. Sua concepção teórica rompe com a prática do modelo vivo, do decalque da realidade, transformada pela técnica de registro. Um novo conceito de criação é definido.
O Sr. G., detentor de uma memória que veicula imagens com um furor que não permite a esta que escape de seu traço rápido antes que seja representada, procura utilizar uma técnica simples, uma vez que a simplicidade da técnica pode produzir efeitos surpreendentes.
O poeta reconhece que os conhecimentos adquiridos pelo estudo da pintura podem fazer crescer, mas não têm o poder de criar o original, o inédito.
O ensaio especifica em detalhes os passos do artista ideal que participa dos fatos do mundo para melhor reconhecê-los e reinventá-los em suas imagens. Apaixonado pela perspectiva, pela luz, pelo espaço, suas obras contém os mais diferentes objetos como reis, rainhas, festas de gala, serviçais, soldados, cortesãs, os espaços que os circundam e/ou os detalhes de suas vidas, desde o batom, o pó-de-arroz, a arma, os veículos, a dobra do tecido, a vestimenta, a forma do pé, enfatizando a graça profissional, ou o detalhe diferenciado. Criaturas em vias de extinção, os dandies são objetos de arte intemporal e figuram como objeto do artista da modernidade, assim como a mulher, elemento de representação em todos os tempos. A aparência e o vestuário das personagens são peças de fusão no plano da arte.
Discute a função da filosofia e da religião que, para Baudelaire conduzem o homem à bondade, enquanto a natureza humana o induz a atrocidades. Considera a virtude como artifício da moral, e o bem como produto de uma arte. A beleza particular das obras do pintor ideal esconde-se na fecundidade moral subjacente a seu trabalho.
Teoriza a moda como um constante esforço em direção ao belo, portanto sempre encantadora, será objeto eterno na representação da modernidade. Complemento da eternidade do belo, a maquilagem surge como tentativa de ultrapassar a Natureza, corrigindo as falhas que porventura hajam nesta. Há, então, que evidenciá-la , registrando na obra sua presença, destacando seus efeitos. O olhar perspicaz do artista idealizado pelo poeta surpreende o mundo moderno, registrando os artificialismos, o superficial, devastando a vida do ricos: suas manias, seus excessos; e, ainda, toda evolução tecnológica: o invento, a criação, o efeito original.
O protótipo ideal do pintor da vida moderna iria encontrar seus iguais: algumas décadas mais tarde, Vincent Van Gogh buscaria inspiração para seus trabalhos em gravuras japonesas, utilizando-se das pinceladas rápidas em suas obras imortais. Um século após a publicação deste ensaio, alguns artistas pré-modernistas produziriam em matéria colorida alguns efeitos teorizados nesse trabalho. Ou, ainda, na arte contemporânea do século XX através dos designers, da publicidade, do desenho, da moda, entre outras formas de manifestação.
O pintor da vida moderna teoriza poeticamente uma visão sobre o objeto da arte, sua possível técnica e suas condições de produção. A arte para Baudelaire seria uma constante busca do novo em todas as esferas da vida econômica, política, social, cultural, descobrindo-a ou inventando-a, à forma dos materiais da modernidade daquele contexto ou de outros quaisquer. Essa busca eterna pelo fugitivo, pelo original, podemos observar em alguns de seus poemas. À modernidade associa-se sempre o ousado, o inovador, o original, aquilo que dá o tom de transformação de um conceito anterior.
Baudelaire desejava fixar o irrepetível da vida que, seqüestrado num determinado momento e ponto, transforma-se em elemento singular, intemporal. Sua teoria configura a obra de arte com forma e conteúdo, enquanto a primeira representa o corpo, o segundo remete à alma da obra, à qual se relaciona a questão do intemporal.
Em seu ensaio teórico, define o conceito de modernidade na arte, conquanto produz uma. Para esse fim, utiliza recursos poéticos tão originais quanto os objetos que a modernidade há que registrar para que se faça.
A modernidade é sempre o marco que parece estar à frente de cada época. Em cada fase da História das Civilizações houve sempre uma modernidade. A de Baudelaire se explicita tanto teoricamente quanto na elaboração deste ensaio que traz, ainda hoje, a marca do que consideramos como moderno.

Friday, January 12, 2007

Freud e S�-Carneiro

Sunday, January 07, 2007

Escrita das Mulheres


A ESCRITA DE PAULA TAVARES
MANTOLVANI, Rosangela. (UNESP - Assis/2003)

Escrever sobre Ana Paula Tavares implica em evocar o mito da mulher da tradição angolana, a sensualidade, o misticismo e os elementos simples do cotidiano. Vista como parte das mulheres do território africano, a mulher angolana é aquela que participa da economia informal e, comercializando os produtos que cultiva ou sua produção artesanal, contribui com parte significativa nos proventos da família. Trata-se da mulher que até algum tempo poderia ser vendida ao seu futuro marido por tradição ou tornar-se uma das quatro esposas de um homem. Seu papel como mãe e esposa são muito cobrados, além de uma velada submissão na relação conjugal.
A mulher angolana, seus hábitos, sentimentos, costumes, tradições e desejos figurarão como temática de alguns dos poemas nas obras analisadas neste trabalho de Paula Tavares, Ritos de Passagem.
Ana Paula Ribeiro Tavares, escritora angolana, representa a voz da mulher angolana, oferecendo ao leitor a arte que diz respeito ao seu território, sua gente, sua identidade, sua ideologia. Uma voz de mulher porque, segundo ela mesma, (...) até muito pouco tempo (...) a voz da mulher não tinha uma identidade (...)1 Poetisa, concorda que sua poesia surja como uma das vozes que expressam a problemática de ser mulher em uma sociedade africana e tudo o que isto possa implicar. No entanto, não a considera como uma voz feminista em sua poesia. Apenas feminina.
Paula Tavares, como é mais conhecida, cursou História na Faculdade de Letras de Luanda e de Lisboa. Em 1996, concluiu Mestrado em Literaturas Africanas. É uma das vozes femininas mais importantes da atualidade no que se refere à poesia angolana.
Em Angola, a poesia ainda é vista como um instrumento de contestação, assim como a própria escrita. E, assim como no Brasil, a autora declara que a poesia é vista como um gênero menor.2 Tanto que, alguns autores que se iniciaram como poetas, perambularam como contistas, acabaram por percorrer o caminho do romance, como se o romance fosse o único gênero que desse um estatuto ao escritor.3
Durante muito tempo, escreveu e não publicou. Afirma que sempre escreveu pensando em alguém, buscando encontrar a vida própria em cada construção, em cada verso, acreditando que um dia sempre se possa publicar.
Sua produção artística sofre influência de poetas angolanos como Davi Mestre, Arlindo Barbeitos e Rui Duarte de Carvalho e dos brasileiros Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e, ainda, como influências secundárias: Murilo Mendes, Clarice Lispector, Octávio Paz, Soyinka, que também foram suas referências em algum momento.
Sobre a citação de provérbios e outros gêneros da literatura oral em seus poemas, Paula debate-se entre desconstruir a fórmula da tradição oral e retrabalhá-la ou reproduzi-la.
Em 1985 publica Ritos de Passagem pela União dos Escritores Angolanos, Luanda. Trata-se de um livro de poemas, dividido em três partes: 1) De cheiro macio ao tato, em que as temáticas giram em torno de elementos da fauna e da flora africanas. Na parte 2) Navegação circular, os poemas tratarão do tema dos ciclos da vida, ainda relacionados à fauna: a abelha, o flamingo, a vaca e o olhar do animal, o boi, elementos do cotidiano de quem nasceu no Lubango (Huíla), como ela e constantes do cenário angolano; e 3) Cerimônias de Passagem, em que procura descrever e representar, entre os fatos cotidianos, cenas de rituais africanos: os cerimoniais, os ciclos, as emoções, os desejos, a mulher, o profundo na simplicidade.
Em 1999, publica O Lago da Lua, pela Editorial Caminho, Lisboa. E, em 2001, surge o terceiro livro de poemas, Dizes-me coisas amargas como os frutos, pela mesma editora. Este, dividido em duas partes: 1) Boi, boi traz dezessete poemas, nos quais observa uma relação entre a memória dos costumes dos antepassados e os sentimentos e comportamentos do presente, ou seja, um resgate da memória cultural. Na parte 2) Vaca fêmea, guia bem amada dos rebanhos, dá-se o agrupamento de dez poemas. E, também nesta parte do livro, os rituais e cerimônias próprios da cultura percorrem cada poema, enquanto os elementos ligados à terra articulam-se para construir imagens ligadas às sensações de um eu poético feminino, salvo exceções, entranhado em parte dos poemas.
As relações que se estabelecem entre as sensações e as imagens que percorrem o trabalho de Paula Tavares atestam seu caráter de originalidade. Não se trata apenas de descrever o exótico e inserir uma imagem do feminino que se construa como algo estranho a ser apreciado, mas de veicular as possibilidades do ser humano em terras que por vezes surgem como paraíso e, por outras como empecilho à sobrevivência. Refazer os retalhos da vida de algumas personagens, recortando elementos do território angolano para marcar a identidade cultural destes seres impõe-se como tema de base dos poemas deste terceiro livro.
Este trabalho propõe descrever, analisar e discutir, de forma sistemática, algumas produções desta poetisa angolana: o primeiro livro de poemas: Ritos de Passagem.
RITOS DE PASSAGEM
O livro celebra sua abertura com o poema Cerimônia de Passagem, em que os elementos simbólicos indicam sempre um ciclo que inicia um outro. Representa mesmo o ciclo da energia que de mecânica (o atrito entre o animal e a pedra) se transforma em térmica.

CERIMÔNIA DE PASSAGEM

“a zebra feriu-se na pedra
a pedra produziu lume”

a rapariga provou o sangue
o sangue deu fruto

a mulher semeou o campo
o campo amadureceu o vinho

o homem bebeu o vinho
o vinho cresceu o canto

o velho começou o círculo
o círculo fechou o princípio

“a zebra feriu-se na pedra
a pedra produziu lume”

No nível fonológico, a repetição constante dos fonemas línguo-dentais e bilabiais, seguidos da vibrante r, estabelecem uma dificuldade, um atrito, uma forma de revelar a forma como se dá a produção do lume, ou seja do fogo e das fogueiras. O mesmo ocorre nos versos 3, 4, 8 e 10 e, ainda, no 12 e 13. Também as reiterações no início de cada verso revelam a circularidade, o caráter cíclico das relações que se evidenciam no cotidiano do ser angolano, das tradições, da relação do humano com a terra, revelando o que confirma a parlenda: o círculo fechou o princípio.
Os vermelhos do fogo, do sangue e do vinho e seus tons degradé contrastam com o preto e o branco da zebra e os tons neutros da pedra. O negro e o branco estão associados ainda aos ciclos da luz: o dia e a noite, definindo a camada cromática do poema.
No plano da sintaxe, o movimento do poema é determinado pelos verbos no pretérito perfeito: feriu-se (reflexivo), produziu, provou, deu, semeou, amadureceu, bebeu, cresceu, começou, fechou. Como em outros poemas, há neste a ausência de elementos de coesão, o que não compromete a coerência, já que se trata de uma construção imagética, cuja compreensão extra-textual está associada ao contexto angolano, ao território e sua leituras.
No plano semiótico, as imagens movimentam-se de acordo com os substantivos que evocam figuras, simbolizando um espaço cultural ligado ao sistema de produção primário e um universo parcialmente selvagem: zebra, pedra, sangue, fruto. Outras imagens evocarão outros ciclos: rapariga, mulher/ homem, velho atendem a uma seqüência que permite visualizar as fases de existência do ser humano, assim como fruto, campo, vinho, canto, círculo, princípio, evocam uma seqüência que pressupõe a produção do ser humano. Cerimoniais da própria existência, a participação do gênero masculino e do feminino na produção e nos ciclos existenciais aparece de forma equivalente. Em todos os processos encontra-se a expressão de um resultado, um produto, o efeito de uma transformação que, unidos, tecem o elo da vida, o círculo vital da sobrevivência da espécie, através da presença de elementos essenciais: o fogo, a terra, o alimento, a arte, a força, o sangue, a reprodução, a velhice, a experiência e os ciclos.

1. De cheiro macio ao tato
Em Ritos de Passagem, os poemas foram agrupados em uma seqüência cujo subtítulo De cheiro macio ao tato faz referência sinestésica ao tema que perpassará oito dos nove poemas desta parte, em que figuram frutos da terra. Dentre os frutos, podemos destacar: O maboque, a anona, o mirangolo, a nêspera, o mamão, a manga, com seus sabores, seus perfumes e sua sensualidade. O aspecto sensual será destacado de alguma forma nos poemas.
O primeiro poema do livro intitula-se Cerimônias de Passagem, subtítulo da terceira parte do livro. A primeira poesia, A abóbora menina, tem como título um nome popular para um determinado tipo de abóbora pequena e macia, usado inclusive, no Brasil. Algumas imagens relativas ao humano integram o poema, de forma a estabelecer a relação entre a abóbora e a menina: segredos bem escondidos, ventre redondo, nela deságuam todos os rapazes.

A ABÓBORA MENINA

Tão gentil de distante, tão macia aos olhos
vacuda; gordinha,
de segredos bem escondidos

estende-se à distância
procurando ser terra
quem sabe possa
acontecer o milagre:
folhinhas verdes
flor amarela
ventre redondo
depois é só esperar
nela deságuam todos os rapazes.

A construção procurando ser terra refere-se tanto à abóbora que estende as ramas como a terra, quanto se refere à menina . O vocábulo terra, que produz um certo estranhamento, porém relaciona-se ao seu sema participativo, fertilidade. A menina procura ser fértil como a terra.
O erotismo e a sensualidade do poema ficam por conta do colorido: folhinhas verdes, flor amarela, ventre redondo. A menina, que ilustra o título e a expressão os rapazes que encerra o poema especifica o aspecto sensual e o bom humor, o tom de brincadeira.
As aliterações imprimem ao poema um ritmo alegre. Diminutivos como gordinha, folhinhas, espalham um tom infantil e de delicadeza, associados ao linguajar das garotas. Abóboras meninas e meninas abóboras, podem transformar-se. As primeiras a partir das flores, as segundas a partir do milagre. Os rapazes deságuam, significa que confluem para ela, a abóbora menina, aqui como metáfora de jovem rapariga.
As imagens produzidas parecem estar concentradas em folhinhas verdes (v.8), flor amarela (v.9), ventre redondo (v.10) e, ainda, associadas ao movimento de crescer: estende-se à distância (v.4), procurando ser terra (v.5).
A estrutura sintática utilizada permite que este poema seja lido do último verso em direção e primeiro e, então, a menina revela-se muito mais aos olhos do leitor que a abóbora, principalmente se a terceira coluna não for lida. Lendo-se apenas a coluna do meio, temos um outro mini-poema, que remete exclusivamente à compreensão do crescimento das jovens meninas.
Nela deságuam todos os rapazes/ depois é só esperar/ acontecer o milagre/ procurando ser terra/ de segredos bem escondidos/ tão gentil de distante, tão macia aos olhos/ a abóbora menina.
Ocorre que não há um prejuízo para a construção sintática a ausência de conectivos e propicia esta leitura, o que imprime ao poema um caráter lúdico, um jogo com os significantes e seus significados, no estilo de Murilo Mendes na primeira fase de sua produção poética, anterior a 1934.
A construção de A Anona, busca especificar dados exatos como um número natural: mil e quarenta e cinco, circunferência, organizando, ainda, prosopopéias. As aliterações marcam presença no poema, como o fonema [k] que aparece acompanhado de assonâncias e nasais: /kua ko ka ka kõ kü/; e, ainda /ě Ě ŭ Ě/.

A ANONA

Tem mil e quarenta e cinco
caroços
cada um com uma circunferência
à volta
agrupam-se todos
(arrumadinha)
no pequeno útero verde
da casca

A estrutura de construção permite que seja lido do último verso para o primeiro, como muitos poemas desse livro, confirmando o caráter lúdico de muitos. Construído a partir de uma única estrofe de oito versos brancos e irregulares, possui uma camada cromática em que os tons variam entre o marrom e o verde. As imagens são arredondadas ou elípticas, como forma de sugerir o próprio fruto e seus componentes, os caroços. Não há propriamente uma definição ou descrição da fruta, mas uma sugestão, pois os vocábulos remetem a imagens geométricas ou algébricas, como por exemplo: mil e quarenta e cinco caroços (...) uma circunferência. Ou sua relação com imagens que remetem ao erótico, ao sensual: (...) útero verde da casca.
O mesmo parece ocorrer com O Mirangolo, metaforizado em pequeno testículo púrpurino, ou seja, tratado como se fora parte de um organismo animal. O vocábulo purpurino mostra a cor do fruto: roxo. Daí a semelhança com parte do órgão masculino: a forma e a cor. Quente, quando encandesce, está pronto para ser processado.

O MIRANGOLO

Testículo adolescente
purpurino
corta os lábios ávidos
com sabor ácido
da vida
encandesce de maduro
e cai

submetido às trezentas e oitenta e duas
feitiçarias do fogo
transforma-se em geléia real:
ILUMINA A GENTE.

O fruto se transforma, não sem antes submeter-se às feitiçarias do fogo, que tem um número exato. Número que insinua misticismo e transformação. O resultado, a geléia, tem um poder, depois de transformado: iluminar. Assim purpurino, corta os lábios, porém quando encandesce, sob a magia do fogo, a púrpura ilumina, após submeter-se ao ritual: as feitiçarias. A presença de sinestesias encontra-se em sabor ácido, purpurino, encandesce (temperatura e cor) e fogo.
A camada cromática nos sugere tons de roxo, o vermelho e o laranja. Novamente o exato (trezentas e oitenta e duas) contrasta com o místico: as feitiçarias.
O trabalho no nível fonológico destaca-se por algumas rimas toantes e por assonâncias nos vocábulos purpurino, ávidos, ácido e vida.
Imagens sensuais se destacam como testículos, lábios, fogo e associam-se a cores e sabores como ácido, maduro. Parece haver uma clara intenção da poetisa em mistificar os fenômenos da natureza, de forma a convertê-los em ocorrências singulares.
A Nocha, representada como uma fruta encantada que esconde o cerne. Ligada à terra, apresenta-se como filha, prosopopéia no estilo de construção. Entre os atributos humanos, a modéstia e o mimo se agrupam aos do reino vegetal. As sensações aparecem neste poema que combina a textura e a cor da farinha, a sensação do frio da região da Huíla, em determinadas épocas do ano, que evoca tanto a cor local ou os sabores que frutificam no inverno.
Os elementos locais, como o planalto e a simplicidade da fruta se fazem presentes, sempre como uma forma de desvelar o espaço angolano e o exotismo contido em seu caráter. A imagem procura localizar o momento em que a planta produz seus frutos no planalto, no frio. Árvore colorida do planalto, que possui frutos farinhentos. A cor, porém não é definida.
A Nêspera surge como uma doce rapariguinha-de-brincos. No poema, essa fruta estabelece uma analogia com a figura da menina que se faz mulher, semelhante ao que ocorre em A abóbora menina. Provida de sensualidade feminina, deixa-se tocar pelo orvalho, o elemento que simboliza o masculino, mansamente. Os paralelos que se estabelecem entre a mulher e a fruta ou as flores articulam um tom sensual e colorido a toda esta parte do poema. Outras frutas surgirão como o mamão, a nêspera, a manga nos demais poemas.
Nos demais poemas, há também o deslocamento do significado do signo, ou seja, o significante imbui-se de outro significado que, metaforicamente, alude ao corpo feminino como útero verde, ventre redondo, arrepie a pele, a pele/ dúctil, a carne chegadinha, ao coração, etc., se mostram nos outros poemas desta parte. Exceção à regra, há o testículo adolescente que se refere ao órgão masculino, ou em poemas como O Maboque , no qual se pode observar que não ocorre uma descrição ou representação do elemento, mas o poema revela as crenças populares e os ditos que se formaram a respeito da fruta, através do tempo, de maneira a transformar-se em filosofia popular, sugerindo o formato do fruto e as formas de parte do corpo feminino, resgatando a oralidade popular.

O MABOQUE

Há uma filosofia
do
quem nunca comeu
tem
por resolver
problemas difíceis
da
libido

Há um Enunciador Universal, a voz da tradição que pretende anunciar que o que nunca experimentou o gosto de tal fruto, tem problemas com os desejos sexuais. E assim, Paula Tavares reconstrói, de uma forma muito interessante essa relação com a fruta que se assemelha aos seios femininos, a partir da voz da literatura oral, o ji-sabu. O fruto é apresentado em função de uma filosofia popular, diz o Enunciador da tradição , os saberes, os costumes, o conhecimento do povo.
Em O Maboque o esquema semiótico da disposição dos signos propicia uma leitura contextual: a forma erótica do maboque procura sugerir uma insinuação.
Construído também com versos desmontáveis, este poema propicia outras leituras cujo significado resultante aproxima-se do sugerido.
A própria construção sintática, com suas frases entrecortadas, insinuando, nas elipses, oculta na sintaxe o que esconde nas palavras, mas o que o senso comum conhece, de uma forma cultural, o que se encontra implícito na construção textual, mas explícito no contexto: o caráter erótico e afrodisíaco do fruto. O que se evidencia aos olhos é o significado a que remete a palavra libido. O que Freud e o Maboque poderiam ter em comum? Uma questão de definição da sexualidade. As formas do Maboque e as formas dos seios femininos. As relações edipianas definidas, assim, em sua relação com o fruto angolano.
O tom sensual, porém às vezes brincalhão, surge na maioria destes poemas que transfiguram os vegetais em organismos sensoriais e sobrecarregados de emoções humanas. Organismos que desfilam no cenário angolano, como A Nocha, por exemplo, que se pode compreender tanto como fruta quanto como árvore. Tanto sente sono quanto mima, esta última, característica exclusiva dos seres humanos.
O elemento mágico também aparece muitas vezes, assim como o secreto, como se pode observar em segredos bem escondidos (AAM), acontecer o milagre (AAM), problemas difíceis (OMA), feitiçarias do fogo (OMI), esconde muito tímida (ANO), amanhece o sonho (ANE), insondável/ o vazio... (OMAM), companheira dos deuses (A MAN).
As frutas compõem, então, a cena do cerimonial, a oferta aos deuses e já está pronta, montada, com todos os exotismos do território angolano. O poema O matrindindi reconstrói a idéia desse animal que veio do Egito para participar, no Sumbe, região de Angola, dos ritos e tradições das tribos dessa região.

2. Navegação Circular:
O cenário da cerimônia parece estar organizado com todas as frutas e esse animal místico, o matridindi, representante da eternidade dos rituais egípcios também se encontra no cenário da passagem, o pôr-do-sol. O mesmo que visualiza a abelha circundando as flores e a flamingo celebrando a tarde. Este cenário de frutas, flores, animais e metamorfoses, nos lagos e ao pôr-do-sol será fotografado, filmado pelo olho-cine de um outro animal: a vaca. Um animal muitas vezes declarado sagrado em algumas ocasiões. Circular, como os ciclos que surgirão na segunda parte de Ritos de Passagem.
É o cenário físico angolano, porém fragmentado por imagens recortadas como convém à estética moderna, de cores fortes e nacionais, que se permite ver e ser percebido pelas sensações, questionado. Quanto do feminino se insere nesse olhar angolano? Como fotografa o feminino o cine-olho?
Ritos de Passagem surge construído, não somente para descrever, mas para preservar os ciclos de vida. Os ciclos que, para os angolanos, se apresentam mais visíveis, dado o contato mais íntimo com o mundo natural.
Cerimônia de Passagem, poema que inicia o livro, abre os ritos, celebrando o aparecimento do lume, o mesmo que iniciou o dia no Gênesis, ou o fogo, simplesmente. O fogo oferecido aos mortais por Prometeu. Produzido pelo atrito, de uma forma primitiva e simples, não pelo estrondo dos céus, com seus raios e coriscos, mas de forma simplificada, pela pedra, o fogo surge como sinal de simbologia, de luz que iluminará os ciclos. A pedra, elemento da natureza, em atrito, produzindo energia, produzindo vida e mantendo os demais ciclos. Produzir fogo associa-se à fogueira, centro da vida nas tribos africanas. O humano, a vida, o fogo e os ciclos estão indefinidamente interligados. Pepetela4, autor angolano, faz lembrar a importância dos ciclos ao declarar: Portanto, só os ciclos eram eternos. Cerimônias de Passagem anuncia, também, a terceira parte deste livro.
Em Navegação Circular, a temática de Circumnavegação e de O amor impossível buscam focalizar os ciclos. No primeiro, o percurso da abelha em direção ao pólen, matéria de origem da produção do mel, alimento essencial a muitos clãs angolanos. E, no segundo, a flamingo cor-de-rosa, um dos animais que se destacam na fauna africana, bem como o peixe prata.

CIRCUMNAVEGAÇÃO

Em volta da flor fez
a abelha
a primeira viagem
circumnavegando
a esfera

Achado o perímetro
suicidou-se, LÚCIDA
no rio de pólen
descoberto.

A abelha navega em círculo à volta da flor, aqui representada pela esfera. Lúcida, que neste caso pode significar que luz, que brilha, pálida, ou perspicaz e inteligente, virtude desse inseto comum no cenário africano, cuja produção está ligada à alimentação, ou seja, à manutenção dos ciclos de vida.
O poema veicula imagens singelas: a flor, a abelha, ou imagens do código matemático: a esfera, o perímetro e uma hipérbole: rio de pólen. O eu-poético busca construir a partir de pequenas ocorrências da Natureza, entre fenômenos físicos e químicos que parecem corriqueiros, revelar o milagre da criação e da transformação, desvelando singular o que aparenta vulgar.
Os animais estarão presentes como força motriz que moverá o sentido dos ciclos e a temática dos poemas em Navegação Circular. A partir do título, a presença das navegações e dos círculos, já enunciadas, ocorrerá em três dos quatros poemas. Exceção à regra, Olho de vaca fotografa a morte, em que somente o círculo está presente, não esquecendo que a morte supõe um outro referencial construtor da obra de Paula Tavares: o ciclo de vida e morte.
Em Circumnavegação, a camada cromática é apenas sugerida por flor e rio de pólen. No plano fonológico, pode-se observar que foi feliz a construção dos versos 7 e 8 em que as vogais reproduzem o zunir das abelhas, ressonando as sibilantes e as líquidas: suicidou-se, lúcida/ no rio de pólen/ .
O amor impossível, poema-piada, ludo, mostra que a brincadeira tem lugar na natureza. O local, nesse caso, é o mangal, terreno em que há vários mangues, com suas plantas exóticas. O horário é definido, porque à tarde as aves retornam ao seu habitat. No poema, o Lubito, região angolana em que nasceu a autora, é o cenário, às seis da tarde. O ciclo presente neste poema é a descrição da cena que se repete todos os dias: a flamingo correndo atrás do peixe prata.
Há que se admitir a utilização muito adequada dos recursos fônicos e semióticos neste trabalho de Paula Tavares. Sua relação com o cenário que pretende representar não permite que o excêntrico passe despercebido, assim como revela o aparentemente vulgar como se fosse único.
Em Olho de vaca fotografa a morte, a voz manifestada pelo eu poético, de uma forma descritiva procura desvendar a habilidade que possui o olho de animal: o cine-olho, com sua visão panorâmica e sua relação com a imagem. Ao paralisar a última imagem vista, estaria registrando sua própria morte, no poema, representado pela eternidade. A presença do animal domesticado, no caso o boi e a vaca integrará a temática de Ritos de Passagem e outros trabalhos. Assim é que em Olho de vaca fotografa a morte, o olhar do animal será o tema do poema.
É possível dizer que todo trabalho de Paula Tavares nestes poemas possui a magia da Imagem. Seus poemas geram imagens que veiculam o exótico: imensos painéis coloridos pela flora e pela fauna angolanas, além do visual de algumas mulheres cercadas por seus universos multicoloridos pelas tradições.
A solidão é o elemento que se faz presente tanto em Olho de vaca fotografa a morte quanto em Boi à vela. A descrição dos bois da província da Huíla, inaugura um novo estranhamento: os bois são navegáveis. Trata-se de bois que atravessam rios, pântanos e charcos, além do que a temática trata de Navegação (...). Assim, como máquinas navegáveis, que podem ser conduzidas, esses bois possuem volantes e, ao contrário das bússolas, indicam o sul.
O poema Boi à vela parece homenagear os animais que fazem parte do cotidiano das tribos desde há muito tempo e sua exata função: a de servir de subsistência ao homem.

3. Cerimônias de Passagem
Na terceira parte, Cerimônias de Passagem, dez poemas discorrerão sobre a temática dos ritos, sejam estes praticados em ocasiões especiais ou cotidianamente. Nesta parte, os poemas veicularão cerimônias e hábitos pelos quais passam as mulheres angolanas. Verificar-se-á, além dos aspectos já abordados nos demais poemas como é o discurso dessa voz que fala de suas tradições e de sua terra.
Na primeira estrofe, o eu poético revela o processo de sua condição, através do riutal que lhe põe a tábua Eylekessa, signficando que ela já está cedida e seus pais receberão o dote, geralmente em forma de animais ( bois) , que o noivo deverá pagar, o conhecido alembamento. Na segunda estrofe, surge outra atribuição feminina: organizar o milho.A voz do eu feminino se revela na construção: filha do Tembo (v. 3).
Em Rapariga, o eu-poético feminino relata sua nascença, identidade e valor social. Um eu que não possui nome, por isso identifica seu caráter com um estereótipo universal de rapariga angolana. Não possui nome no poema, pois sua identificação é estabelecida em relação à figura masculina É a filha de Huco/ com a sua primeira esposa. As pulseiras que são colocadas em suas pernas terão um sentido de ritual nas tribos do Sul de Angola, pois servirá para marcar a quantidade de bois que possui a mulher, além de servir de adorno. Ela se identifica como mais uma no clã do boi. (v.7). A estrofe 4 remete a seus antepassados e suas heranças, tradições, hábitos e costumes, enquanto a estrofe 5 remete a dois elementos de fundamental importância para a sobrevivência do angolano: a árvore e o boi. O primeiro, diz respeito ao plano espiritual e o segundo, ao material. Habitat dos espíritos dos mortos, a árvore é o elemento vital para o equilíbrio emocional do angolano.

RAPARIGA

Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarraram-me já às costas, a tábua Eylekessa

Filha do Tembo
organizo o milho
Trago nas pernas as pulseiras pesadas
Dos dias que passaram...

Sou do clã do boi –
Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo do deserto,
a falta de limite...

Da mistura do boi e da árvore
a efervescência
o desejo
a intranquilidade
a proximidade
do mar

Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada,
Concedeu-me
o favor de suas tetas úberes.

Entre as cores do poema, revela-se uma paisagem agrícola: o mar, o milho, o boi, o deserto, a árvore, as pulseiras, sugerindo cores que se sobrepõe em tons. A estrofe 6 trata de sua origem social, tribal. È filha da primeira de uma das quatro mulheres de seu pai. Talvez uma espécie de princesa.
Exacto Limite revela o ritual de Okatwandolo, espécie de feiticeira que delimita o espaço a ser ocupado pela menina que receberá o cinto de compromisso. Este poema, como Rapariga, revela alguns dos mistérios dos rituais exóticos por que passam as mulheres angolanas em seus cerimoniais.

EXACTO LIMITE

A cerca do Eumbo estava aberta
Okatwandolo,
“a que solta gritos de alegria”

colocou o exato limite:
árvore
cabana
a menina da frente
saíram todos para procurar o mel
enquanto, o leite
(de crescido)
se semeava, azedo
pelo chão

comi o boi
provei o sangue
fizeram-me a cabeleira
fecharam o cinto:
Madrugada
Porta
EXACTO LIMITE

Neste poema, como em Rapariga, apresenta-se um eu feminino cuja voz encarrega-se de cumprir os preceitos e rituais da tradição. Não se trata de uma voz de protesto ou de lamento, desvelando apenas o que estaria confinado aos segredos seculares de suas ancestrais. O poema revela também um ritual em que a moça aguarda o seu momento. Nesse ritual em que os elementos como leite, sangue, mel, o boi, entre outros, misturam-se a cenas como tranças no cabelo e um cinto que determina a condição do eu-feminino naquele momento.
Espécie de feiticeira tribal Okatwandolo parece determinar o permitido e o vetado, o que definiu o exato limite, que, aparentemente parece terminar na cerca do Eumbo. Um poder feminino, porém recoberto pelo misticismo. Enquanto a cerca se encontra aberta, o cinto continua fechado, ou seja, a retém.
Alguns símbolos surgem com o sentido de impedimento: cerca, porta e cinto. O último, porém encontra-se ligado ao significado de especificar o estado em que se encontra a nubente.
Em Colheitas, surgirão plasmados os ciclos lunares, as décadas e os ciclos de uso da terra, semente e adubação. O tempo em Colheitas determina o ciclo e os círculos, as sementes, as terras, a rotatividade das culturas.
Os elementos da terra surgem nesse poema com uma grande força. Interessante notar que vinte e oito dias representam, também, o intervalo do ciclo menstrual feminino. A fertilidade de terra e das mulheres construir-se-á nos ciclos.
No poema Alphabeto o eu-poético realiza-se como o ser marcado pelos dedos (dáctilos) de um outro que , ao tocá-lo é capaz de refazê-lo, fechar as cicatrizes que residem nesse corpo. A construção enquanto abertas aparece propositadamente e estrategicamente localizada no texto, de forma que tanto as mãos poderiam estar abertas quanto as cicatrizes estariam, ainda, abertas.

ALPHABETO

Dactilas-me o corpo
de A a z

e reconstróis
asas
seda
puro espanto

por debaixo das mãos
enquanto abertas
aparecem pequenas
as cicatrizes

Este é um dos poemas cujos versos podem ser deslocados, ou seja, são versos móveis que, reorganizados, podem imprimir outros sentidos ao poema, próximos ou contraditórios ao sentido mais evidente.
O fonema f grafado como ph remete a uma língua arcaica, uma cultura clássica A complementação deste sentido encontra-se na palavra dactilas-me, conjugação do suposto verbo dactilar, ou seja, marcar com os dedos, escrever com os dedos os poemas, criado e conjugado especialmente para este texto com o significado de dedos que tocam ou pé de verso, composto por uma sílaba tônica e duas átonas.
Alphabeto é uma referência muito forte ao ritual de gestação do poema, à produção textual, à linguagem, a partir do registro escrito. A reconstrução encontra-se ligada ao ato de escritura, ao processo de criação e reconstrução. As asas da imaginação estariam ligadas aos dedos, aos versos que a palavra daktilos também significa e a asas, a liberdade de expressão.
No nível fonológico há o efeito das sibilantes, freqüentes do verso 1 ao 5, acompanhado das líquidas e das fricativas surdas, oferecendo a impressão de leveza, de material suave, como o toque de dedos.
As imagens que se destacam neste poema são: os dedos, o corpo, os grafemas do alfabeto. Associada a dedos, as mãos (v.7) estão ligadas à representação de asas (v.4). As mãos unidas e abertas podem representar asas, as que impulsionam o ato de criação, de forma a plasmar idéias, sonhos. O vocábulo seda aparece como metáfora de maciez das mãos. As cicatrizes e a seda se confrontam como imagens relativas às mãos, de forma a revelar espanto.
Em No fundo tudo é simples, o eu-poético busca reconstruir a temática do tempo, expresso como agente da memória, como ilusão a partir da matéria e os fragmentos interiores que o compõe.
A idéia de ciclo e círculo, no entanto, permanece, apresentando um tempo que é cíclico também para a estrutura material.
Animal sixty, que significa Animal sessenta procura resgatar um momento em que o jeans e o blues animavam a existência dos jovens do mundo ocidental: os anos 60 e os movimentos pela igualdade social e racial, promovidos pelos negros na sociedade norte americana, ao lado do movimento hippie. A planície, além de outros significados, procura representar essa igualdade e a liberdade de expressão aparece simbolizada na construção mãos de pássaros. As expressões em inglês têm a função exata de promover a localização espaço temporal dos protestos ocorridos nos bairros negros nos E.U.A.
O apelo de liberdade e igualdade social dos negros americanos encontra-se em todos os sentidos sugeridos pela palavra blues, que significa o canto de dor dos negros.
Cerimônia secreta é mais um poema–piada cercado de erotismo, em que a temática alude ao fato que o mamoeiro macho possa mudar de sexo transformando-se em fêmea, mediante a presença de um falo, numa clara insinuação às relações homossexuais. No caso, percebido como ritual de mudança definitiva de sexo.
Em Ritos de Passagem, alguns poemas aparecem sem título e no topo surge apenas uma filosofia ou provérbio, originários da tradição oral. Um destes, o que trata da filosofia da Cabinda, província de Angola, onde se encontram grandes reservas de petróleo: As coisas delicadas tratam-se com cuidado.
Essa filosofia parece funcionar como espécie de ironia com relação ao tema discutido pelo poema, aqui indicado como I. Um eu feminino é a voz poética que articula essa construção. É possível de ser detectada em relação às suas atribuições, ou seja, práticas exclusivas do universo feminino no território angolano: bater a manteiga e usar o cinto identificador de seu estado civil.. Esse eu poético revela sua existência em relação ao outro ser, cujo comportamento revela-se dominante.
No verso 1, desossaste-me, tem o sentido de desestruturar, retirar a estrutura, e inscrever-me, o sentido de incluir-se no. O eu poético converge para os valores do outro, ou seja, o universo do outro., com tudo que lhe é caro, enquanto o seu deixa de existir. Os versos 8, 9 e 10 tratam de mostrar que toda força do eu feminino foi canalizada para o Outro. Representado pelas veias e implicitamente pelo sangue o que se põe em jogo é a identidade do eu poético, que sofreu profunda modificação. A força motriz que atravessa esse poema reflete a voz do dominado. O poema desvela os processos de desconstrução e reconstrução aos quais se submete o eu feminino. Visto sob este aspecto, é possível afirmar que a identidade da personagem sofre um processo de desconstrução e posterior apagamento, de acordo com os versos 11,12, 13 e 14. O pulmão que mal existe representa essa face apagada. Cooptada pela ideologia, ou pela atração irresistível do mundo que lhe é estranho, o eu poético depara-se nesse momento com a conscientização e a rejeição desses valores.
As cercas e cercados presentes nos poemas de Paula Tavares funcionam simbolicamente como limites, fronteiras, muralhas que devem ser ultrapassadas, limites que devem ser quebrados, identidades que precisam ser resgatadas.
A negação dos valores do seu universo empurra o eu poético em direção aos caminhos dos bois: o sul. Impressão de que o sul é o caminho da liberdade, da mudança de condição. A partida a impedirá de realizar suas rotinas diárias: bater a manteiga, por o cinto, rituais que não mais serão cumpridos. A temática da libertação do eu feminino perpassa esse poema que veicula os valores da tradição das relações entre homens e mulheres, a voz da tradição e a voz feminina.

As coisas delicadas tratam-se com cuidado.
Filosofia Cabinda

Desossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
maldita necessária

conduziste todas as minhas veias
para que desaguássem
nas tuas
sem remédio
meio pulmão respira em ti
o outro, que me lembre
mal existe

hoje levantei-me cedo
pintei de tacula e água fria
o corpo aceso
não bato a manteiga
não ponho o cinto
VOU
para o sul saltar o cercado.

O poema pode ser dividido em dois momentos, de acordo com as estrofes: na primeira, o eu poético expõe sua visão sobre seu papel na relação que exerce com o Outro, narrando como se vê em relação a esse universo. Na segunda estrofe, revela o que fez ao acordar e sua atitude de desacordo com a situação que se apresenta.
No tocante à citação inicial, um provérbio da Cabinda, pode-se dizer que a fragilidade do eu poético é superado e transmutado em força por dois principais motivos evidentes nos argumentos do poema: 1) conduzir o eu à análise e reflexão e, 2) atuar em favor da recuperação de seus ideais e identidades, afastando-se da situação de des-construção e apagamento dos valores o do eu feminino.
O segundo poema que aparece sem título, aqui nomeado por II, apresenta no topo uma dedicatória: para Ana. Este poema trata de definir as características físicas e os aspectos funcionais da ternura. Como uma definição do elemento, o verso 1 indica as características gerais da ternura: ela se apresenta humana. Tratada como uma substância e analisada, a partir do verso 2, cujas propriedades aparecem especificadas.
Assim, a ternura sofre um processo de transformação, é materializada na primeira parte do poema, estrofes 1 e 2. Na segunda parte, a ternura sofre uma outra metamorfose e adquire atributos exclusivos dos seres orgânicos: é animalizada.
Enquanto o verso 1 lhe atribui propriedades humanas: riso, lágrimas, o verso 2 passa a tratá-la como substância química, mais especificamente um metal que ferve a 380 centígrados. Segundo o poema, a ternura estaria em locais de difícil acesso a automóveis. Mas não a automóveis quaisquer, somente a automóveis de estimação. A ternura não estaria, então nos clubes de automóveis. O sentido criado provoca o estranhamento. Daí a fragmentação de imagens que compõem os poemas de Paula Tavares imprimirem uma tendência surrealista, em que as imagens oníricas apresentam-se como parte das corriqueiras.

Para Ana
A ternura tem som, riso e lágrimas
muda de estado e dilata-se
ferve a 380 centígrados
está orientada em grados

Encontra-se em forma pura
Em locais próximos
mas
de acesso difícil
a automóveis de estimação

Em estado selvagem não morre:
Cresce
Reproduz-se
Transforma-se
Cercada
Cristaliza
Emudece,
Perde o brilho
Esvai-se aos poucos, até ao fim.

A ternura assume quatro formas: de metal, a forma pura, o estado selvagem e cercada. Cada estrofe busca atribuir caracteres a cada um destes estados. A ternura cercada, transforma-se em uma espécie de vírus na forma cristalizada e, finalmente, em algo que se desintegra ou evapora, pois esvai-se.
As imagens oferecidas por esse poema são tão abstratas e surrealistas quanto o próprio tema de que trata: a existência da ternura e suas manifestações.
Processos de gradação, metáforas, prosopopéia, materialização e animalização são alguns dos recursos de estilo utilizados pela poetisa nesta construção interessante que, em algum momento lembra um dos poemas de Antonio Gideão. As gradações aparecem construídas com os verbos (v. 10, 11, 12, 13) e ainda os verbos dos versos 15, 16, 17, 18.
O Terceiro poema sem título que se encontra nesta parte, nomeado por III, vem anunciado por um provérbio Cabinda. Uma maneira bastante usada por Paula Tavares: remeter o trabalho à literatura oral de seu país. Chorar não chorar/ a planície fica na mesma soa como uma referência à relação entre colonizadores e colonizados.
O eu poético que articula este poema vé o processo de colonização como plantar (v. 2), porém, de uma forma invasora: cada um no mar do outro. Ou seja, invadindo, ocupando, não somente o espaço ( o mar do outro), mas a memória (enchendo de farpas).
A segunda estrofe procura metaforizar a conseqüência irremediável do processo de colonização: as mortes. A metáfora que a constrói, localizada nos versos 9 e 10, duas bandeiras velhas / a meia-haste, os pavilhões em luto, ironicamente saúdam-se cavalheirescamente pelas perdas.
Mortes resultantes das unhas que ferem. Compreendendo unhas como metáfora de armas, os dias de vazio ficam, assim, preenchidos pelas dores, pelas farpas da memória, ou seja, pelos dissabores decorrentes desse processo de ocupação ou de plantar cada um no mar do outro.
No plano fônico, a incidência de vogais mais fechadas e nasais imprime um tom de melancolia e lamento ao texto, mais soturno que os demais poemas. Apesar disso, o tom de serenidade não abandona o poema.
Três imagens se fazem evidentes aos olhos do leitor: mar, duas bandeiras velhas a meia haste, o alto (...) dos muros/ muito brancos. Essa última imagem provavelmente refere-se aos fortes que abrigavam as forças colonizadoras. A fragmentação de imagens no poema permite que as inferências remetam o receptor ao contexto angolano e suas lutas pela libertação do país. As imagens ocupam o espaço do concreto e, também, do surreal.

Chorar não chorar
a planície fica na mesma
Provérbio Cabinda

Colonizámos a vida
plantando
cada um no mar do outro
as unhas da distância da palavra da loucura
enchendo de farpas a memória
preenchemos os dias de vazio

no alto destes muros
muito brancos
duas bandeiras velhas
a meia-haste
saúdam-se, solenes

O vocábulo unhas terá o sentido de garras ou armas e neste caso ilustrará outras como armas da distância/ armas da palavra/ garras da loucura. Os significados dos verbos aparecem como vocábulos relativos ao ato de colonizar: colonizámos -> enchemos (o mar do outro) -> preenchemos (os dias de vazio).
Para referir-se ao processo mesmo de oferecer estilhaços da cultura, pequenas farpas que são oferecidas à memória, um processo de aculturação que se pretende revelar. Trata-se, ainda assim, de uma arma, uma arma da colonização, assim como as unhas. Também a palavra faz parte desse jogo de conquista e ocupação, acompanhada da loucura.
No caso do território angolano, a distância entre o colonizador e o colonizado impôs a colonização da vida de todos os que viviam no território, ou seja, que outra língua e outros costumes surgissem, como farpas na memória. Ou que nessa memória restassem apenas farpas dos costumes de outrora. Os mesmos costumes que a autora busca resgatar, como forma de preservar sua identidade e genealogia, sua origem na negritude, sua integração no universo das tradições de Angola, com seus provérbios, seus frutos exóticos, seus ciclos e seus eternos rituais.

1 Entrevista concedida a Cláudia Pastore. Site: http;/www.blocosonline.com.br/ entrev/entrev02.htm (acessado em 06/06/03) . p. 1 a 4
2 id. ibid., p. 2
3 id. ibid. , p.2.
4 PEPETELA. A Geração da Utopia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 9
OBS: A FORMA DOS POEMAS (UMA DAS MARCAS DO ESTILO DA AUTORA) NÃO SE MANTÊM NA FORMA DA PUBLICAÇÃO

Escrita das Mulheres


A ESCRITA DE PAULA TAVARES
MANTOLVANI, Rosangela. (UNESP - Assis/2003)

Escrever sobre Ana Paula Tavares implica em evocar o mito da mulher da tradição angolana, a sensualidade, o misticismo e os elementos simples do cotidiano. Vista como parte das mulheres do território africano, a mulher angolana é aquela que participa da economia informal e, comercializando os produtos que cultiva ou sua produção artesanal, contribui com parte significativa nos proventos da família. Trata-se da mulher que até algum tempo poderia ser vendida ao seu futuro marido por tradição ou tornar-se uma das quatro esposas de um homem. Seu papel como mãe e esposa são muito cobrados, além de uma velada submissão na relação conjugal.
A mulher angolana, seus hábitos, sentimentos, costumes, tradições e desejos figurarão como temática de alguns dos poemas nas obras analisadas neste trabalho de Paula Tavares, Ritos de Passagem.
Ana Paula Ribeiro Tavares, escritora angolana, representa a voz da mulher angolana, oferecendo ao leitor a arte que diz respeito ao seu território, sua gente, sua identidade, sua ideologia. Uma voz de mulher porque, segundo ela mesma, (...) até muito pouco tempo (...) a voz da mulher não tinha uma identidade (...)1 Poetisa, concorda que sua poesia surja como uma das vozes que expressam a problemática de ser mulher em uma sociedade africana e tudo o que isto possa implicar. No entanto, não a considera como uma voz feminista em sua poesia. Apenas feminina.
Paula Tavares, como é mais conhecida, cursou História na Faculdade de Letras de Luanda e de Lisboa. Em 1996, concluiu Mestrado em Literaturas Africanas. É uma das vozes femininas mais importantes da atualidade no que se refere à poesia angolana.
Em Angola, a poesia ainda é vista como um instrumento de contestação, assim como a própria escrita. E, assim como no Brasil, a autora declara que a poesia é vista como um gênero menor.2 Tanto que, alguns autores que se iniciaram como poetas, perambularam como contistas, acabaram por percorrer o caminho do romance, como se o romance fosse o único gênero que desse um estatuto ao escritor.3
Durante muito tempo, escreveu e não publicou. Afirma que sempre escreveu pensando em alguém, buscando encontrar a vida própria em cada construção, em cada verso, acreditando que um dia sempre se possa publicar.
Sua produção artística sofre influência de poetas angolanos como Davi Mestre, Arlindo Barbeitos e Rui Duarte de Carvalho e dos brasileiros Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e, ainda, como influências secundárias: Murilo Mendes, Clarice Lispector, Octávio Paz, Soyinka, que também foram suas referências em algum momento.
Sobre a citação de provérbios e outros gêneros da literatura oral em seus poemas, Paula debate-se entre desconstruir a fórmula da tradição oral e retrabalhá-la ou reproduzi-la.
Em 1985 publica Ritos de Passagem pela União dos Escritores Angolanos, Luanda. Trata-se de um livro de poemas, dividido em três partes: 1) De cheiro macio ao tato, em que as temáticas giram em torno de elementos da fauna e da flora africanas. Na parte 2) Navegação circular, os poemas tratarão do tema dos ciclos da vida, ainda relacionados à fauna: a abelha, o flamingo, a vaca e o olhar do animal, o boi, elementos do cotidiano de quem nasceu no Lubango (Huíla), como ela e constantes do cenário angolano; e 3) Cerimônias de Passagem, em que procura descrever e representar, entre os fatos cotidianos, cenas de rituais africanos: os cerimoniais, os ciclos, as emoções, os desejos, a mulher, o profundo na simplicidade.
Em 1999, publica O Lago da Lua, pela Editorial Caminho, Lisboa. E, em 2001, surge o terceiro livro de poemas, Dizes-me coisas amargas como os frutos, pela mesma editora. Este, dividido em duas partes: 1) Boi, boi traz dezessete poemas, nos quais observa uma relação entre a memória dos costumes dos antepassados e os sentimentos e comportamentos do presente, ou seja, um resgate da memória cultural. Na parte 2) Vaca fêmea, guia bem amada dos rebanhos, dá-se o agrupamento de dez poemas. E, também nesta parte do livro, os rituais e cerimônias próprios da cultura percorrem cada poema, enquanto os elementos ligados à terra articulam-se para construir imagens ligadas às sensações de um eu poético feminino, salvo exceções, entranhado em parte dos poemas.
As relações que se estabelecem entre as sensações e as imagens que percorrem o trabalho de Paula Tavares atestam seu caráter de originalidade. Não se trata apenas de descrever o exótico e inserir uma imagem do feminino que se construa como algo estranho a ser apreciado, mas de veicular as possibilidades do ser humano em terras que por vezes surgem como paraíso e, por outras como empecilho à sobrevivência. Refazer os retalhos da vida de algumas personagens, recortando elementos do território angolano para marcar a identidade cultural destes seres impõe-se como tema de base dos poemas deste terceiro livro.
Este trabalho propõe descrever, analisar e discutir, de forma sistemática, algumas produções desta poetisa angolana: o primeiro livro de poemas: Ritos de Passagem.
RITOS DE PASSAGEM
O livro celebra sua abertura com o poema Cerimônia de Passagem, em que os elementos simbólicos indicam sempre um ciclo que inicia um outro. Representa mesmo o ciclo da energia que de mecânica (o atrito entre o animal e a pedra) se transforma em térmica.

CERIMÔNIA DE PASSAGEM

“a zebra feriu-se na pedra
a pedra produziu lume”

a rapariga provou o sangue
o sangue deu fruto

a mulher semeou o campo
o campo amadureceu o vinho

o homem bebeu o vinho
o vinho cresceu o canto

o velho começou o círculo
o círculo fechou o princípio

“a zebra feriu-se na pedra
a pedra produziu lume”

No nível fonológico, a repetição constante dos fonemas línguo-dentais e bilabiais, seguidos da vibrante r, estabelecem uma dificuldade, um atrito, uma forma de revelar a forma como se dá a produção do lume, ou seja do fogo e das fogueiras. O mesmo ocorre nos versos 3, 4, 8 e 10 e, ainda, no 12 e 13. Também as reiterações no início de cada verso revelam a circularidade, o caráter cíclico das relações que se evidenciam no cotidiano do ser angolano, das tradições, da relação do humano com a terra, revelando o que confirma a parlenda: o círculo fechou o princípio.
Os vermelhos do fogo, do sangue e do vinho e seus tons degradé contrastam com o preto e o branco da zebra e os tons neutros da pedra. O negro e o branco estão associados ainda aos ciclos da luz: o dia e a noite, definindo a camada cromática do poema.
No plano da sintaxe, o movimento do poema é determinado pelos verbos no pretérito perfeito: feriu-se (reflexivo), produziu, provou, deu, semeou, amadureceu, bebeu, cresceu, começou, fechou. Como em outros poemas, há neste a ausência de elementos de coesão, o que não compromete a coerência, já que se trata de uma construção imagética, cuja compreensão extra-textual está associada ao contexto angolano, ao território e sua leituras.
No plano semiótico, as imagens movimentam-se de acordo com os substantivos que evocam figuras, simbolizando um espaço cultural ligado ao sistema de produção primário e um universo parcialmente selvagem: zebra, pedra, sangue, fruto. Outras imagens evocarão outros ciclos: rapariga, mulher/ homem, velho atendem a uma seqüência que permite visualizar as fases de existência do ser humano, assim como fruto, campo, vinho, canto, círculo, princípio, evocam uma seqüência que pressupõe a produção do ser humano. Cerimoniais da própria existência, a participação do gênero masculino e do feminino na produção e nos ciclos existenciais aparece de forma equivalente. Em todos os processos encontra-se a expressão de um resultado, um produto, o efeito de uma transformação que, unidos, tecem o elo da vida, o círculo vital da sobrevivência da espécie, através da presença de elementos essenciais: o fogo, a terra, o alimento, a arte, a força, o sangue, a reprodução, a velhice, a experiência e os ciclos.

1. De cheiro macio ao tato
Em Ritos de Passagem, os poemas foram agrupados em uma seqüência cujo subtítulo De cheiro macio ao tato faz referência sinestésica ao tema que perpassará oito dos nove poemas desta parte, em que figuram frutos da terra. Dentre os frutos, podemos destacar: O maboque, a anona, o mirangolo, a nêspera, o mamão, a manga, com seus sabores, seus perfumes e sua sensualidade. O aspecto sensual será destacado de alguma forma nos poemas.
O primeiro poema do livro intitula-se Cerimônias de Passagem, subtítulo da terceira parte do livro. A primeira poesia, A abóbora menina, tem como título um nome popular para um determinado tipo de abóbora pequena e macia, usado inclusive, no Brasil. Algumas imagens relativas ao humano integram o poema, de forma a estabelecer a relação entre a abóbora e a menina: segredos bem escondidos, ventre redondo, nela deságuam todos os rapazes.

A ABÓBORA MENINA

Tão gentil de distante, tão macia aos olhos
vacuda; gordinha,
de segredos bem escondidos

estende-se à distância
procurando ser terra
quem sabe possa
acontecer o milagre:
folhinhas verdes
flor amarela
ventre redondo
depois é só esperar
nela deságuam todos os rapazes.

A construção procurando ser terra refere-se tanto à abóbora que estende as ramas como a terra, quanto se refere à menina . O vocábulo terra, que produz um certo estranhamento, porém relaciona-se ao seu sema participativo, fertilidade. A menina procura ser fértil como a terra.
O erotismo e a sensualidade do poema ficam por conta do colorido: folhinhas verdes, flor amarela, ventre redondo. A menina, que ilustra o título e a expressão os rapazes que encerra o poema especifica o aspecto sensual e o bom humor, o tom de brincadeira.
As aliterações imprimem ao poema um ritmo alegre. Diminutivos como gordinha, folhinhas, espalham um tom infantil e de delicadeza, associados ao linguajar das garotas. Abóboras meninas e meninas abóboras, podem transformar-se. As primeiras a partir das flores, as segundas a partir do milagre. Os rapazes deságuam, significa que confluem para ela, a abóbora menina, aqui como metáfora de jovem rapariga.
As imagens produzidas parecem estar concentradas em folhinhas verdes (v.8), flor amarela (v.9), ventre redondo (v.10) e, ainda, associadas ao movimento de crescer: estende-se à distância (v.4), procurando ser terra (v.5).
A estrutura sintática utilizada permite que este poema seja lido do último verso em direção e primeiro e, então, a menina revela-se muito mais aos olhos do leitor que a abóbora, principalmente se a terceira coluna não for lida. Lendo-se apenas a coluna do meio, temos um outro mini-poema, que remete exclusivamente à compreensão do crescimento das jovens meninas.
Nela deságuam todos os rapazes/ depois é só esperar/ acontecer o milagre/ procurando ser terra/ de segredos bem escondidos/ tão gentil de distante, tão macia aos olhos/ a abóbora menina.
Ocorre que não há um prejuízo para a construção sintática a ausência de conectivos e propicia esta leitura, o que imprime ao poema um caráter lúdico, um jogo com os significantes e seus significados, no estilo de Murilo Mendes na primeira fase de sua produção poética, anterior a 1934.
A construção de A Anona, busca especificar dados exatos como um número natural: mil e quarenta e cinco, circunferência, organizando, ainda, prosopopéias. As aliterações marcam presença no poema, como o fonema [k] que aparece acompanhado de assonâncias e nasais: /kua ko ka ka kõ kü/; e, ainda /ě Ě ŭ Ě/.

A ANONA

Tem mil e quarenta e cinco
caroços
cada um com uma circunferência
à volta
agrupam-se todos
(arrumadinha)
no pequeno útero verde
da casca

A estrutura de construção permite que seja lido do último verso para o primeiro, como muitos poemas desse livro, confirmando o caráter lúdico de muitos. Construído a partir de uma única estrofe de oito versos brancos e irregulares, possui uma camada cromática em que os tons variam entre o marrom e o verde. As imagens são arredondadas ou elípticas, como forma de sugerir o próprio fruto e seus componentes, os caroços. Não há propriamente uma definição ou descrição da fruta, mas uma sugestão, pois os vocábulos remetem a imagens geométricas ou algébricas, como por exemplo: mil e quarenta e cinco caroços (...) uma circunferência. Ou sua relação com imagens que remetem ao erótico, ao sensual: (...) útero verde da casca.
O mesmo parece ocorrer com O Mirangolo, metaforizado em pequeno testículo púrpurino, ou seja, tratado como se fora parte de um organismo animal. O vocábulo purpurino mostra a cor do fruto: roxo. Daí a semelhança com parte do órgão masculino: a forma e a cor. Quente, quando encandesce, está pronto para ser processado.

O MIRANGOLO

Testículo adolescente
purpurino
corta os lábios ávidos
com sabor ácido
da vida
encandesce de maduro
e cai

submetido às trezentas e oitenta e duas
feitiçarias do fogo
transforma-se em geléia real:
ILUMINA A GENTE.

O fruto se transforma, não sem antes submeter-se às feitiçarias do fogo, que tem um número exato. Número que insinua misticismo e transformação. O resultado, a geléia, tem um poder, depois de transformado: iluminar. Assim purpurino, corta os lábios, porém quando encandesce, sob a magia do fogo, a púrpura ilumina, após submeter-se ao ritual: as feitiçarias. A presença de sinestesias encontra-se em sabor ácido, purpurino, encandesce (temperatura e cor) e fogo.
A camada cromática nos sugere tons de roxo, o vermelho e o laranja. Novamente o exato (trezentas e oitenta e duas) contrasta com o místico: as feitiçarias.
O trabalho no nível fonológico destaca-se por algumas rimas toantes e por assonâncias nos vocábulos purpurino, ávidos, ácido e vida.
Imagens sensuais se destacam como testículos, lábios, fogo e associam-se a cores e sabores como ácido, maduro. Parece haver uma clara intenção da poetisa em mistificar os fenômenos da natureza, de forma a convertê-los em ocorrências singulares.
A Nocha, representada como uma fruta encantada que esconde o cerne. Ligada à terra, apresenta-se como filha, prosopopéia no estilo de construção. Entre os atributos humanos, a modéstia e o mimo se agrupam aos do reino vegetal. As sensações aparecem neste poema que combina a textura e a cor da farinha, a sensação do frio da região da Huíla, em determinadas épocas do ano, que evoca tanto a cor local ou os sabores que frutificam no inverno.
Os elementos locais, como o planalto e a simplicidade da fruta se fazem presentes, sempre como uma forma de desvelar o espaço angolano e o exotismo contido em seu caráter. A imagem procura localizar o momento em que a planta produz seus frutos no planalto, no frio. Árvore colorida do planalto, que possui frutos farinhentos. A cor, porém não é definida.
A Nêspera surge como uma doce rapariguinha-de-brincos. No poema, essa fruta estabelece uma analogia com a figura da menina que se faz mulher, semelhante ao que ocorre em A abóbora menina. Provida de sensualidade feminina, deixa-se tocar pelo orvalho, o elemento que simboliza o masculino, mansamente. Os paralelos que se estabelecem entre a mulher e a fruta ou as flores articulam um tom sensual e colorido a toda esta parte do poema. Outras frutas surgirão como o mamão, a nêspera, a manga nos demais poemas.
Nos demais poemas, há também o deslocamento do significado do signo, ou seja, o significante imbui-se de outro significado que, metaforicamente, alude ao corpo feminino como útero verde, ventre redondo, arrepie a pele, a pele/ dúctil, a carne chegadinha, ao coração, etc., se mostram nos outros poemas desta parte. Exceção à regra, há o testículo adolescente que se refere ao órgão masculino, ou em poemas como O Maboque , no qual se pode observar que não ocorre uma descrição ou representação do elemento, mas o poema revela as crenças populares e os ditos que se formaram a respeito da fruta, através do tempo, de maneira a transformar-se em filosofia popular, sugerindo o formato do fruto e as formas de parte do corpo feminino, resgatando a oralidade popular.

O MABOQUE

Há uma filosofia
do
quem nunca comeu
tem
por resolver
problemas difíceis
da
libido

Há um Enunciador Universal, a voz da tradição que pretende anunciar que o que nunca experimentou o gosto de tal fruto, tem problemas com os desejos sexuais. E assim, Paula Tavares reconstrói, de uma forma muito interessante essa relação com a fruta que se assemelha aos seios femininos, a partir da voz da literatura oral, o ji-sabu. O fruto é apresentado em função de uma filosofia popular, diz o Enunciador da tradição , os saberes, os costumes, o conhecimento do povo.
Em O Maboque o esquema semiótico da disposição dos signos propicia uma leitura contextual: a forma erótica do maboque procura sugerir uma insinuação.
Construído também com versos desmontáveis, este poema propicia outras leituras cujo significado resultante aproxima-se do sugerido.
A própria construção sintática, com suas frases entrecortadas, insinuando, nas elipses, oculta na sintaxe o que esconde nas palavras, mas o que o senso comum conhece, de uma forma cultural, o que se encontra implícito na construção textual, mas explícito no contexto: o caráter erótico e afrodisíaco do fruto. O que se evidencia aos olhos é o significado a que remete a palavra libido. O que Freud e o Maboque poderiam ter em comum? Uma questão de definição da sexualidade. As formas do Maboque e as formas dos seios femininos. As relações edipianas definidas, assim, em sua relação com o fruto angolano.
O tom sensual, porém às vezes brincalhão, surge na maioria destes poemas que transfiguram os vegetais em organismos sensoriais e sobrecarregados de emoções humanas. Organismos que desfilam no cenário angolano, como A Nocha, por exemplo, que se pode compreender tanto como fruta quanto como árvore. Tanto sente sono quanto mima, esta última, característica exclusiva dos seres humanos.
O elemento mágico também aparece muitas vezes, assim como o secreto, como se pode observar em segredos bem escondidos (AAM), acontecer o milagre (AAM), problemas difíceis (OMA), feitiçarias do fogo (OMI), esconde muito tímida (ANO), amanhece o sonho (ANE), insondável/ o vazio... (OMAM), companheira dos deuses (A MAN).
As frutas compõem, então, a cena do cerimonial, a oferta aos deuses e já está pronta, montada, com todos os exotismos do território angolano. O poema O matrindindi reconstrói a idéia desse animal que veio do Egito para participar, no Sumbe, região de Angola, dos ritos e tradições das tribos dessa região.

2. Navegação Circular:
O cenário da cerimônia parece estar organizado com todas as frutas e esse animal místico, o matridindi, representante da eternidade dos rituais egípcios também se encontra no cenário da passagem, o pôr-do-sol. O mesmo que visualiza a abelha circundando as flores e a flamingo celebrando a tarde. Este cenário de frutas, flores, animais e metamorfoses, nos lagos e ao pôr-do-sol será fotografado, filmado pelo olho-cine de um outro animal: a vaca. Um animal muitas vezes declarado sagrado em algumas ocasiões. Circular, como os ciclos que surgirão na segunda parte de Ritos de Passagem.
É o cenário físico angolano, porém fragmentado por imagens recortadas como convém à estética moderna, de cores fortes e nacionais, que se permite ver e ser percebido pelas sensações, questionado. Quanto do feminino se insere nesse olhar angolano? Como fotografa o feminino o cine-olho?
Ritos de Passagem surge construído, não somente para descrever, mas para preservar os ciclos de vida. Os ciclos que, para os angolanos, se apresentam mais visíveis, dado o contato mais íntimo com o mundo natural.
Cerimônia de Passagem, poema que inicia o livro, abre os ritos, celebrando o aparecimento do lume, o mesmo que iniciou o dia no Gênesis, ou o fogo, simplesmente. O fogo oferecido aos mortais por Prometeu. Produzido pelo atrito, de uma forma primitiva e simples, não pelo estrondo dos céus, com seus raios e coriscos, mas de forma simplificada, pela pedra, o fogo surge como sinal de simbologia, de luz que iluminará os ciclos. A pedra, elemento da natureza, em atrito, produzindo energia, produzindo vida e mantendo os demais ciclos. Produzir fogo associa-se à fogueira, centro da vida nas tribos africanas. O humano, a vida, o fogo e os ciclos estão indefinidamente interligados. Pepetela4, autor angolano, faz lembrar a importância dos ciclos ao declarar: Portanto, só os ciclos eram eternos. Cerimônias de Passagem anuncia, também, a terceira parte deste livro.
Em Navegação Circular, a temática de Circumnavegação e de O amor impossível buscam focalizar os ciclos. No primeiro, o percurso da abelha em direção ao pólen, matéria de origem da produção do mel, alimento essencial a muitos clãs angolanos. E, no segundo, a flamingo cor-de-rosa, um dos animais que se destacam na fauna africana, bem como o peixe prata.

CIRCUMNAVEGAÇÃO

Em volta da flor fez
a abelha
a primeira viagem
circumnavegando
a esfera

Achado o perímetro
suicidou-se, LÚCIDA
no rio de pólen
descoberto.

A abelha navega em círculo à volta da flor, aqui representada pela esfera. Lúcida, que neste caso pode significar que luz, que brilha, pálida, ou perspicaz e inteligente, virtude desse inseto comum no cenário africano, cuja produção está ligada à alimentação, ou seja, à manutenção dos ciclos de vida.
O poema veicula imagens singelas: a flor, a abelha, ou imagens do código matemático: a esfera, o perímetro e uma hipérbole: rio de pólen. O eu-poético busca construir a partir de pequenas ocorrências da Natureza, entre fenômenos físicos e químicos que parecem corriqueiros, revelar o milagre da criação e da transformação, desvelando singular o que aparenta vulgar.
Os animais estarão presentes como força motriz que moverá o sentido dos ciclos e a temática dos poemas em Navegação Circular. A partir do título, a presença das navegações e dos círculos, já enunciadas, ocorrerá em três dos quatros poemas. Exceção à regra, Olho de vaca fotografa a morte, em que somente o círculo está presente, não esquecendo que a morte supõe um outro referencial construtor da obra de Paula Tavares: o ciclo de vida e morte.
Em Circumnavegação, a camada cromática é apenas sugerida por flor e rio de pólen. No plano fonológico, pode-se observar que foi feliz a construção dos versos 7 e 8 em que as vogais reproduzem o zunir das abelhas, ressonando as sibilantes e as líquidas: suicidou-se, lúcida/ no rio de pólen/ .
O amor impossível, poema-piada, ludo, mostra que a brincadeira tem lugar na natureza. O local, nesse caso, é o mangal, terreno em que há vários mangues, com suas plantas exóticas. O horário é definido, porque à tarde as aves retornam ao seu habitat. No poema, o Lubito, região angolana em que nasceu a autora, é o cenário, às seis da tarde. O ciclo presente neste poema é a descrição da cena que se repete todos os dias: a flamingo correndo atrás do peixe prata.
Há que se admitir a utilização muito adequada dos recursos fônicos e semióticos neste trabalho de Paula Tavares. Sua relação com o cenário que pretende representar não permite que o excêntrico passe despercebido, assim como revela o aparentemente vulgar como se fosse único.
Em Olho de vaca fotografa a morte, a voz manifestada pelo eu poético, de uma forma descritiva procura desvendar a habilidade que possui o olho de animal: o cine-olho, com sua visão panorâmica e sua relação com a imagem. Ao paralisar a última imagem vista, estaria registrando sua própria morte, no poema, representado pela eternidade. A presença do animal domesticado, no caso o boi e a vaca integrará a temática de Ritos de Passagem e outros trabalhos. Assim é que em Olho de vaca fotografa a morte, o olhar do animal será o tema do poema.
É possível dizer que todo trabalho de Paula Tavares nestes poemas possui a magia da Imagem. Seus poemas geram imagens que veiculam o exótico: imensos painéis coloridos pela flora e pela fauna angolanas, além do visual de algumas mulheres cercadas por seus universos multicoloridos pelas tradições.
A solidão é o elemento que se faz presente tanto em Olho de vaca fotografa a morte quanto em Boi à vela. A descrição dos bois da província da Huíla, inaugura um novo estranhamento: os bois são navegáveis. Trata-se de bois que atravessam rios, pântanos e charcos, além do que a temática trata de Navegação (...). Assim, como máquinas navegáveis, que podem ser conduzidas, esses bois possuem volantes e, ao contrário das bússolas, indicam o sul.
O poema Boi à vela parece homenagear os animais que fazem parte do cotidiano das tribos desde há muito tempo e sua exata função: a de servir de subsistência ao homem.

3. Cerimônias de Passagem
Na terceira parte, Cerimônias de Passagem, dez poemas discorrerão sobre a temática dos ritos, sejam estes praticados em ocasiões especiais ou cotidianamente. Nesta parte, os poemas veicularão cerimônias e hábitos pelos quais passam as mulheres angolanas. Verificar-se-á, além dos aspectos já abordados nos demais poemas como é o discurso dessa voz que fala de suas tradições e de sua terra.
Na primeira estrofe, o eu poético revela o processo de sua condição, através do riutal que lhe põe a tábua Eylekessa, signficando que ela já está cedida e seus pais receberão o dote, geralmente em forma de animais ( bois) , que o noivo deverá pagar, o conhecido alembamento. Na segunda estrofe, surge outra atribuição feminina: organizar o milho.A voz do eu feminino se revela na construção: filha do Tembo (v. 3).
Em Rapariga, o eu-poético feminino relata sua nascença, identidade e valor social. Um eu que não possui nome, por isso identifica seu caráter com um estereótipo universal de rapariga angolana. Não possui nome no poema, pois sua identificação é estabelecida em relação à figura masculina É a filha de Huco/ com a sua primeira esposa. As pulseiras que são colocadas em suas pernas terão um sentido de ritual nas tribos do Sul de Angola, pois servirá para marcar a quantidade de bois que possui a mulher, além de servir de adorno. Ela se identifica como mais uma no clã do boi. (v.7). A estrofe 4 remete a seus antepassados e suas heranças, tradições, hábitos e costumes, enquanto a estrofe 5 remete a dois elementos de fundamental importância para a sobrevivência do angolano: a árvore e o boi. O primeiro, diz respeito ao plano espiritual e o segundo, ao material. Habitat dos espíritos dos mortos, a árvore é o elemento vital para o equilíbrio emocional do angolano.

RAPARIGA

Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarraram-me já às costas, a tábua Eylekessa

Filha do Tembo
organizo o milho
Trago nas pernas as pulseiras pesadas
Dos dias que passaram...

Sou do clã do boi –
Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo do deserto,
a falta de limite...

Da mistura do boi e da árvore
a efervescência
o desejo
a intranquilidade
a proximidade
do mar

Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada,
Concedeu-me
o favor de suas tetas úberes.

Entre as cores do poema, revela-se uma paisagem agrícola: o mar, o milho, o boi, o deserto, a árvore, as pulseiras, sugerindo cores que se sobrepõe em tons. A estrofe 6 trata de sua origem social, tribal. È filha da primeira de uma das quatro mulheres de seu pai. Talvez uma espécie de princesa.
Exacto Limite revela o ritual de Okatwandolo, espécie de feiticeira que delimita o espaço a ser ocupado pela menina que receberá o cinto de compromisso. Este poema, como Rapariga, revela alguns dos mistérios dos rituais exóticos por que passam as mulheres angolanas em seus cerimoniais.

EXACTO LIMITE

A cerca do Eumbo estava aberta
Okatwandolo,
“a que solta gritos de alegria”

colocou o exato limite:
árvore
cabana
a menina da frente
saíram todos para procurar o mel
enquanto, o leite
(de crescido)
se semeava, azedo
pelo chão

comi o boi
provei o sangue
fizeram-me a cabeleira
fecharam o cinto:
Madrugada
Porta
EXACTO LIMITE

Neste poema, como em Rapariga, apresenta-se um eu feminino cuja voz encarrega-se de cumprir os preceitos e rituais da tradição. Não se trata de uma voz de protesto ou de lamento, desvelando apenas o que estaria confinado aos segredos seculares de suas ancestrais. O poema revela também um ritual em que a moça aguarda o seu momento. Nesse ritual em que os elementos como leite, sangue, mel, o boi, entre outros, misturam-se a cenas como tranças no cabelo e um cinto que determina a condição do eu-feminino naquele momento.
Espécie de feiticeira tribal Okatwandolo parece determinar o permitido e o vetado, o que definiu o exato limite, que, aparentemente parece terminar na cerca do Eumbo. Um poder feminino, porém recoberto pelo misticismo. Enquanto a cerca se encontra aberta, o cinto continua fechado, ou seja, a retém.
Alguns símbolos surgem com o sentido de impedimento: cerca, porta e cinto. O último, porém encontra-se ligado ao significado de especificar o estado em que se encontra a nubente.
Em Colheitas, surgirão plasmados os ciclos lunares, as décadas e os ciclos de uso da terra, semente e adubação. O tempo em Colheitas determina o ciclo e os círculos, as sementes, as terras, a rotatividade das culturas.
Os elementos da terra surgem nesse poema com uma grande força. Interessante notar que vinte e oito dias representam, também, o intervalo do ciclo menstrual feminino. A fertilidade de terra e das mulheres construir-se-á nos ciclos.
No poema Alphabeto o eu-poético realiza-se como o ser marcado pelos dedos (dáctilos) de um outro que , ao tocá-lo é capaz de refazê-lo, fechar as cicatrizes que residem nesse corpo. A construção enquanto abertas aparece propositadamente e estrategicamente localizada no texto, de forma que tanto as mãos poderiam estar abertas quanto as cicatrizes estariam, ainda, abertas.

ALPHABETO

Dactilas-me o corpo
de A a z

e reconstróis
asas
seda
puro espanto

por debaixo das mãos
enquanto abertas
aparecem pequenas
as cicatrizes

Este é um dos poemas cujos versos podem ser deslocados, ou seja, são versos móveis que, reorganizados, podem imprimir outros sentidos ao poema, próximos ou contraditórios ao sentido mais evidente.
O fonema f grafado como ph remete a uma língua arcaica, uma cultura clássica A complementação deste sentido encontra-se na palavra dactilas-me, conjugação do suposto verbo dactilar, ou seja, marcar com os dedos, escrever com os dedos os poemas, criado e conjugado especialmente para este texto com o significado de dedos que tocam ou pé de verso, composto por uma sílaba tônica e duas átonas.
Alphabeto é uma referência muito forte ao ritual de gestação do poema, à produção textual, à linguagem, a partir do registro escrito. A reconstrução encontra-se ligada ao ato de escritura, ao processo de criação e reconstrução. As asas da imaginação estariam ligadas aos dedos, aos versos que a palavra daktilos também significa e a asas, a liberdade de expressão.
No nível fonológico há o efeito das sibilantes, freqüentes do verso 1 ao 5, acompanhado das líquidas e das fricativas surdas, oferecendo a impressão de leveza, de material suave, como o toque de dedos.
As imagens que se destacam neste poema são: os dedos, o corpo, os grafemas do alfabeto. Associada a dedos, as mãos (v.7) estão ligadas à representação de asas (v.4). As mãos unidas e abertas podem representar asas, as que impulsionam o ato de criação, de forma a plasmar idéias, sonhos. O vocábulo seda aparece como metáfora de maciez das mãos. As cicatrizes e a seda se confrontam como imagens relativas às mãos, de forma a revelar espanto.
Em No fundo tudo é simples, o eu-poético busca reconstruir a temática do tempo, expresso como agente da memória, como ilusão a partir da matéria e os fragmentos interiores que o compõe.
A idéia de ciclo e círculo, no entanto, permanece, apresentando um tempo que é cíclico também para a estrutura material.
Animal sixty, que significa Animal sessenta procura resgatar um momento em que o jeans e o blues animavam a existência dos jovens do mundo ocidental: os anos 60 e os movimentos pela igualdade social e racial, promovidos pelos negros na sociedade norte americana, ao lado do movimento hippie. A planície, além de outros significados, procura representar essa igualdade e a liberdade de expressão aparece simbolizada na construção mãos de pássaros. As expressões em inglês têm a função exata de promover a localização espaço temporal dos protestos ocorridos nos bairros negros nos E.U.A.
O apelo de liberdade e igualdade social dos negros americanos encontra-se em todos os sentidos sugeridos pela palavra blues, que significa o canto de dor dos negros.
Cerimônia secreta é mais um poema–piada cercado de erotismo, em que a temática alude ao fato que o mamoeiro macho possa mudar de sexo transformando-se em fêmea, mediante a presença de um falo, numa clara insinuação às relações homossexuais. No caso, percebido como ritual de mudança definitiva de sexo.
Em Ritos de Passagem, alguns poemas aparecem sem título e no topo surge apenas uma filosofia ou provérbio, originários da tradição oral. Um destes, o que trata da filosofia da Cabinda, província de Angola, onde se encontram grandes reservas de petróleo: As coisas delicadas tratam-se com cuidado.
Essa filosofia parece funcionar como espécie de ironia com relação ao tema discutido pelo poema, aqui indicado como I. Um eu feminino é a voz poética que articula essa construção. É possível de ser detectada em relação às suas atribuições, ou seja, práticas exclusivas do universo feminino no território angolano: bater a manteiga e usar o cinto identificador de seu estado civil.. Esse eu poético revela sua existência em relação ao outro ser, cujo comportamento revela-se dominante.
No verso 1, desossaste-me, tem o sentido de desestruturar, retirar a estrutura, e inscrever-me, o sentido de incluir-se no. O eu poético converge para os valores do outro, ou seja, o universo do outro., com tudo que lhe é caro, enquanto o seu deixa de existir. Os versos 8, 9 e 10 tratam de mostrar que toda força do eu feminino foi canalizada para o Outro. Representado pelas veias e implicitamente pelo sangue o que se põe em jogo é a identidade do eu poético, que sofreu profunda modificação. A força motriz que atravessa esse poema reflete a voz do dominado. O poema desvela os processos de desconstrução e reconstrução aos quais se submete o eu feminino. Visto sob este aspecto, é possível afirmar que a identidade da personagem sofre um processo de desconstrução e posterior apagamento, de acordo com os versos 11,12, 13 e 14. O pulmão que mal existe representa essa face apagada. Cooptada pela ideologia, ou pela atração irresistível do mundo que lhe é estranho, o eu poético depara-se nesse momento com a conscientização e a rejeição desses valores.
As cercas e cercados presentes nos poemas de Paula Tavares funcionam simbolicamente como limites, fronteiras, muralhas que devem ser ultrapassadas, limites que devem ser quebrados, identidades que precisam ser resgatadas.
A negação dos valores do seu universo empurra o eu poético em direção aos caminhos dos bois: o sul. Impressão de que o sul é o caminho da liberdade, da mudança de condição. A partida a impedirá de realizar suas rotinas diárias: bater a manteiga, por o cinto, rituais que não mais serão cumpridos. A temática da libertação do eu feminino perpassa esse poema que veicula os valores da tradição das relações entre homens e mulheres, a voz da tradição e a voz feminina.

As coisas delicadas tratam-se com cuidado.
Filosofia Cabinda

Desossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
maldita necessária

conduziste todas as minhas veias
para que desaguássem
nas tuas
sem remédio
meio pulmão respira em ti
o outro, que me lembre
mal existe

hoje levantei-me cedo
pintei de tacula e água fria
o corpo aceso
não bato a manteiga
não ponho o cinto
VOU
para o sul saltar o cercado.

O poema pode ser dividido em dois momentos, de acordo com as estrofes: na primeira, o eu poético expõe sua visão sobre seu papel na relação que exerce com o Outro, narrando como se vê em relação a esse universo. Na segunda estrofe, revela o que fez ao acordar e sua atitude de desacordo com a situação que se apresenta.
No tocante à citação inicial, um provérbio da Cabinda, pode-se dizer que a fragilidade do eu poético é superado e transmutado em força por dois principais motivos evidentes nos argumentos do poema: 1) conduzir o eu à análise e reflexão e, 2) atuar em favor da recuperação de seus ideais e identidades, afastando-se da situação de des-construção e apagamento dos valores o do eu feminino.
O segundo poema que aparece sem título, aqui nomeado por II, apresenta no topo uma dedicatória: para Ana. Este poema trata de definir as características físicas e os aspectos funcionais da ternura. Como uma definição do elemento, o verso 1 indica as características gerais da ternura: ela se apresenta humana. Tratada como uma substância e analisada, a partir do verso 2, cujas propriedades aparecem especificadas.
Assim, a ternura sofre um processo de transformação, é materializada na primeira parte do poema, estrofes 1 e 2. Na segunda parte, a ternura sofre uma outra metamorfose e adquire atributos exclusivos dos seres orgânicos: é animalizada.
Enquanto o verso 1 lhe atribui propriedades humanas: riso, lágrimas, o verso 2 passa a tratá-la como substância química, mais especificamente um metal que ferve a 380 centígrados. Segundo o poema, a ternura estaria em locais de difícil acesso a automóveis. Mas não a automóveis quaisquer, somente a automóveis de estimação. A ternura não estaria, então nos clubes de automóveis. O sentido criado provoca o estranhamento. Daí a fragmentação de imagens que compõem os poemas de Paula Tavares imprimirem uma tendência surrealista, em que as imagens oníricas apresentam-se como parte das corriqueiras.

Para Ana
A ternura tem som, riso e lágrimas
muda de estado e dilata-se
ferve a 380 centígrados
está orientada em grados

Encontra-se em forma pura
Em locais próximos
mas
de acesso difícil
a automóveis de estimação

Em estado selvagem não morre:
Cresce
Reproduz-se
Transforma-se
Cercada
Cristaliza
Emudece,
Perde o brilho
Esvai-se aos poucos, até ao fim.

A ternura assume quatro formas: de metal, a forma pura, o estado selvagem e cercada. Cada estrofe busca atribuir caracteres a cada um destes estados. A ternura cercada, transforma-se em uma espécie de vírus na forma cristalizada e, finalmente, em algo que se desintegra ou evapora, pois esvai-se.
As imagens oferecidas por esse poema são tão abstratas e surrealistas quanto o próprio tema de que trata: a existência da ternura e suas manifestações.
Processos de gradação, metáforas, prosopopéia, materialização e animalização são alguns dos recursos de estilo utilizados pela poetisa nesta construção interessante que, em algum momento lembra um dos poemas de Antonio Gideão. As gradações aparecem construídas com os verbos (v. 10, 11, 12, 13) e ainda os verbos dos versos 15, 16, 17, 18.
O Terceiro poema sem título que se encontra nesta parte, nomeado por III, vem anunciado por um provérbio Cabinda. Uma maneira bastante usada por Paula Tavares: remeter o trabalho à literatura oral de seu país. Chorar não chorar/ a planície fica na mesma soa como uma referência à relação entre colonizadores e colonizados.
O eu poético que articula este poema vé o processo de colonização como plantar (v. 2), porém, de uma forma invasora: cada um no mar do outro. Ou seja, invadindo, ocupando, não somente o espaço ( o mar do outro), mas a memória (enchendo de farpas).
A segunda estrofe procura metaforizar a conseqüência irremediável do processo de colonização: as mortes. A metáfora que a constrói, localizada nos versos 9 e 10, duas bandeiras velhas / a meia-haste, os pavilhões em luto, ironicamente saúdam-se cavalheirescamente pelas perdas.
Mortes resultantes das unhas que ferem. Compreendendo unhas como metáfora de armas, os dias de vazio ficam, assim, preenchidos pelas dores, pelas farpas da memória, ou seja, pelos dissabores decorrentes desse processo de ocupação ou de plantar cada um no mar do outro.
No plano fônico, a incidência de vogais mais fechadas e nasais imprime um tom de melancolia e lamento ao texto, mais soturno que os demais poemas. Apesar disso, o tom de serenidade não abandona o poema.
Três imagens se fazem evidentes aos olhos do leitor: mar, duas bandeiras velhas a meia haste, o alto (...) dos muros/ muito brancos. Essa última imagem provavelmente refere-se aos fortes que abrigavam as forças colonizadoras. A fragmentação de imagens no poema permite que as inferências remetam o receptor ao contexto angolano e suas lutas pela libertação do país. As imagens ocupam o espaço do concreto e, também, do surreal.

Chorar não chorar
a planície fica na mesma
Provérbio Cabinda

Colonizámos a vida
plantando
cada um no mar do outro
as unhas da distância da palavra da loucura
enchendo de farpas a memória
preenchemos os dias de vazio

no alto destes muros
muito brancos
duas bandeiras velhas
a meia-haste
saúdam-se, solenes

O vocábulo unhas terá o sentido de garras ou armas e neste caso ilustrará outras como armas da distância/ armas da palavra/ garras da loucura. Os significados dos verbos aparecem como vocábulos relativos ao ato de colonizar: colonizámos -> enchemos (o mar do outro) -> preenchemos (os dias de vazio).
Para referir-se ao processo mesmo de oferecer estilhaços da cultura, pequenas farpas que são oferecidas à memória, um processo de aculturação que se pretende revelar. Trata-se, ainda assim, de uma arma, uma arma da colonização, assim como as unhas. Também a palavra faz parte desse jogo de conquista e ocupação, acompanhada da loucura.
No caso do território angolano, a distância entre o colonizador e o colonizado impôs a colonização da vida de todos os que viviam no território, ou seja, que outra língua e outros costumes surgissem, como farpas na memória. Ou que nessa memória restassem apenas farpas dos costumes de outrora. Os mesmos costumes que a autora busca resgatar, como forma de preservar sua identidade e genealogia, sua origem na negritude, sua integração no universo selvagem de Angola, com seus provérbios, seus frutos exóticos, seus ciclos e seus eternos rituais.

1 Entrevista concedida a Cláudia Pastore. Site: http;/www.blocosonline.com.br/ entrev/entrev02.htm (acessado em 06/06/03) . p. 1 a 4
2 id. ibid., p. 2
3 id. ibid. , p.2.
4 PEPETELA. A Geração da Utopia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 9